quarta-feira, 13 de julho de 2011

Al-Gharb 1146

“Decido-me a acompanhar Ibn Gânia durante parte do trajecto de regresso a Sevilha. Fazia gosto de partilhar com ele um velho prazer meu, o de deambular ao acaso, sem pressas nem destino, pelo buliçoso souk de Mértola àquela hora variável, dependente das marés, em que os mercadores se reúnem para expedir a mercadoria rio abaixo – o Guadiana, todo de tonalidades glaucas, o uade Ana, o rio da Ovelha que serpenteia com caprichoso geometrismo até à foz.
… tornou-se um hábito de há tempos fazer uma pausa … na que já foi a poderosa taifa de Mértola, a bela cidade na colina, dominada pela mesquita e pelo kasr. Um muge, um peixe do rio de carne branca e firme, frito com coentros ou em sikbay (molho de escabeche) justifica amplamente a escala “técnica”.
De súbito, gritos de dor lacinantes, súplicas pungentes de socorro. Um corpo envolto numa túnica negra debate-se, retorce-se, encarquilha-se, crepita todo em labaredas. No meio das chamas que se desprendem das roupas ainda vislumbro um rosto de menina e uns longos cabelos loiros também já a arder.
Gera-se o pânico no mercado de Mértola. Os dez soldados tuaregues da escolta pessoal de Ibn Gânia, que não largam o seu chefe um só minuto, receando tudo e todos, juntam-se ao povo que tenta, em vão, apagar o fogo que devora a jovem mulher.
Nesse preciso instante, quatro vultos que ainda há pouco, negociavam numa melopeia interminável um cesto de “chilarcas” uma espécie de cogumelos da região, rodeiam Ibn Gânia e, sem que eu pudesse esboçar um mínimo movimento, trespassam-no com estocadas secas e precisas.
Os soldados da guarda apercebem-se, embora tarde demais, do sucedido. Derrubam os vultos, pontapeiam-nos e, a golpes de lança e cimitarra, pefuram, esquartejam, decepam os corpos que nenhuma resistência oferecem, preparados que estavam para o holocausto. Os rostos mutilados de quatro jovens esboçam um derradeiro sorriso de missão cumprida e recompesa esperada no Paraíso de Alá. Apenas num deles creio ter vislumbrado um angustiado ricto de dúvida de última hora. Patético! Dos cadáveres desprende-se, como uma névoa de vapor, um forte cheiro de haxixe.
… rigorosamente à mesma hora em que Ibn Gânia era assassinado no mercado de Mértola, uma freira tenta aproximar-se de Afonso VII … em Toledo…
Dois soldados de Afonso VII detiveram-na de imediato… Num ápice a falsa monja, envolta em salitre, nafta e betume, transforma-se num archote… desintegrando-se num farrapo de carne. Os guardas pessoais ficam logo ali estralhaçados, estourados pela vilolência da explosão. O rei escapa á morte por um fio…
Mais uma vez, segundo constava do relatório, o cheiro inebriante de cânhamo queimado, de haxixe, subrepunha-se ao dos explosivos.
… Não foi por acaso que o terror assassino escolheu como seus primeiros alvos, no Al-Andalus, Ibn Gânia, no Sul, e Afonso VII, no Norte. Ambos, cada um nas suas “circunstâncias”, personificavam a prudência e a moderação.
Mas os deuses da intolerância são ávidos, têm sede, muita sede…”

Alberto Xavier, Al-Gharb 1146 Uma viagem onírica ao Portugal muçulmano. Bertrand Editora, 2005

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